Conforme observado pelo cientista político Octavio Amorim Neto (“Presidencialismo e governabilidade nas Américas” – 2006), em sistemas presidencialistas multipartidários (como no caso brasileiro), o chefe do Executivo tem, basicamente, dois tipos de estratégia para construir a necessária governabilidade: contar com o apoio majoritário do Legislativo ou se amparar em prerrogativas unilaterais da presidência da República.
Quando o governo de turno opta pelo primeiro tipo de estratégia, o processo de construção de seu gabinete ministerial deve levar em conta dois critérios fundamentais. O primeiro deles é o partidário: é preciso que os partidos com os quais o governo deseja contar no Congresso estejam representados na lista de ministros. O segundo critério é a proporcionalidade (“coalescência” no jargão técnico): ou seja, não basta que os partidos estejam representados no gabinete, sendo necessário também que as nomeações respeitem o peso (proporcional) que cada legenda partidária possui no Legislativo em termos de bancada (partidos com mais representantes no Congresso recebem mais nomeações do que aqueles com menos).
Já no caso do segundo tipo de estratégia referido acima, o governo de turno tem mais autonomia para nomear uma coleção de ministros, digamos, mais personalizada: com base em critérios como confiança, lealdade, afinidade de interesses, etc. Isso porque o chefe do Executivo pretende se valer, mais amiúde, de suas prerrogativas unilaterais: portarias, decretos, medidas provisórias, entre outras.
É importante ressaltar que esses dois tipos de estratégias não são necessariamente excludentes. Ao contrário, é comum que os presidentes (sobretudo em sistemas multipartidários) tenham que recorrer aos dois expedientes, a fim de levarem sua agenda política adiante. Duas questões importam aqui: qual a estratégia predominante e qual seu nível de eficácia?
No caso do Brasil, o gabinete recém-empossado sugere que o governo pretende (pelo menos de início) contar predominantemente com sua própria caneta, deixando o Congresso em segundo plano – já que, embora conte com políticos experimentados como Onyx Lorenzoni e Osmar Terra, a maioria das escolhas ministeriais assenta-se nas convicções ideológicas dos bolsonaros ou de seus simpatizantes.
De onde podem vir os problemas? Ora, de onde eles sempre vem: da realidade (algo que o presidente, seu círculo familiar e a militância mais barulhenta tem evitado insistentemente).
Como se sabe, Jair Bolsonaro foi eleito com base em uma narrativa populista de direita: para salvar o Brasil, seria necessário (apenas) retirar as esquerdas do poder, eliminando assim a corrupção, o bolivarianismo, o comunismo, as “ideologias de gênero”, etc. etc. etc. Isso feito, o Brasil voltaria a ser, como há 50 anos, honesto, próspero, heterossexual, etc. etc. etc.
A realidade, que teima em não ir embora, é menos bucólica: uma economia em frangalhos que, embora tenha deixado para trás uma das maiores recessões de sua história, ainda ostenta mais de 12 milhões de desempregados e suas terríveis e duradouras consequências (expansão da pobreza, deterioração do acesso a bens básicos como saúde e educação, e por ai vai…).
Enfrentar essa realidade exige que a economia volte a crescer. O que, por sua vez, requer um equacionamento mínimo da situação fiscal do Estado (reformas da previdência e tributária, por exemplos). É aí que começam a surgir os problemas. Por questões de espaço, menciono apenas dois deles:
Primeiro: o máximo que o eleitorado do novo presidente ouviu sobre reformas durante a campanha e a transição entre governos foi a promessa (populista) de diminuição da carga tributária. Como esse eleitorado reagirá quando descobrir que isso não será possível a curto e médio prazos?
Segundo: as reformas referidas acima (previdência e tributária), para que tenham alguma relevância nas contas públicas, não podem ser feitas via prerrogativas do Executivo – ou seja, precisam da anuência do Congresso. No caso de Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), exige-se o apoio de 3/5 dos integrantes, em dois turnos de votação, nas duas casas legislativas. O que, salta à vista, não configura tarefa das mais simples. Como um gabinete não partidário vai articular o imprescindível (nesses e noutros casos importantes) apoio Legislativo?
Caso a questão da solvência fiscal do Estado não seja devidamente equacionada, tornando-se uma questão de insolvência, acompanhada de suas gravíssimas consequências (inflação, atrasos de salário, colapso de serviços públicos básicos, entre outros), não haverá cortina de fumaça (“marxismo cultural”, “ameaça comunista”, “ideologia de gênero”, etc. etc. etc.) capaz de desviar o foco daquilo que realmente importa.
Wellington Nunes* Atualmente é pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira (NUSP), professor no curso de especialização em sociologia politica e co-editor da Newsletter Series of the The observatory of social and political elites of Brazil, todos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPR.
Autor do livro “Análise da política brasileira: instituições, elites, eleitores e níveis de governo”, recentemente publicado pela Editora InterSaberes.
Foi professor-tutor na disciplina “Opinião Pública e Comportamento Político” do curso de graduação em Ciência Política (EaD) oferecido pelo Centro Universitário Uninter.
Possui graduação e mestrado em ciência política e doutorado em sociologia. Atualmente participa de um programa de pós-doutorado em ciência política na UFPR.
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